Comida, patrimônio e direito cultural

“A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, por sua vez são estruturadas por práticas sociais recorrentes.” (Giddens, 1990:37-8).

 

Tudo deságua no lugar da identidade e une-se também ao que se compreende por território.

Nas sociedades contemporâneas o que se entende por identidade está em pleno processo de deslocamento ou fragmentação. Certamente no olhar patrimonial busca-se e até justifica-se as ações do Estado, enfatizando o conceito de identidade e sujeito, que é importante argumento para o que se entende por identidades culturais – aqueles aspectos das nossas identidades que surgem do nosso pertencimento à culturas, grupos étnicos, linguísticos, religiosos, e principalmente na construção do que é nacional. Se há um forte desejo de revelar, salvaguardar, documentar, e registrar fenômenos que têm evidente concentração de identidade, ou de identidades, é porque nas sociedades contemporâneas, pós-modernas, chega-se ao sentimento da crise de identidade: “a identidade somente se torna uma questão quando está em crise”. (Mercer, 1990)

Isso também é uma busca pela patrimonialização da comida, anexada a busca pela identidade como construções permanentes e dinâmicas de nichos ideológicos. Então, o Estado busca assumir esse lugar legitimador para, de certa forma, recuperar uma trajetória de fazeres, de usos, de costumes e principalmente para atender a exigência crescente das representações dos excluídos dos processos econômicos nesse desenvolvimento global.

 

comida patrimônio Brasil Bom de Boca
Foto de Jorge Sabino

 

“A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia […]”. (Hall, 1990)

Certamente a construção do paladar é uma construção da cultura, e assim formam-se os conceitos dos sabores: de salgado, de doce; do que é quente ou frio, e não apenas por sensações físicas, mas simbólicas. Assim, o paladar amplia as relações com o mundo representado: estética, compromissos religiosos, códigos éticos e morais, gênero, poder entre tantos outros.

A chamada globalização que se dá na boca, na busca pela comida que já ocorria no final do século XV, e especialmente no século XVI com as grandes navegações de Portugal, singrando por mares nunca d’antes navegados, cumprindo o destino histórico de que navegar é preciso, e encontrar novos mercados para atender as necessidades de comer também é preciso.

Enquanto isto, foi se mantendo a tradição, vinda de Portugal, de muito quitute mourisco ou africano: o alfenim, o alfeolo, o cuscuz, por exemplo. Foram eles se conservando nos tabuleiros ao lado dos brasileirismos: as cocadas – talvez adaptação de doce indiano –, as castanhas de caju confeitadas, as rapaduras, os doces secos de caju, o bolo de goma, o mugunzá, a pamonha servida em palha de milho, a tapioca seca e molhada, vendida em folha de bananeira, a farinha de castanha em cartucho, o manué. E o tabuleiro foi se tornando, nas principais cidades do Brasil, e não apenas do Nordeste, uma arte, uma ciência, uma especialidade das “baianas” ou das negras: mulheres, quase sempre imensas de gordas que, sentadas à esquina de uma rua ou à sombra de uma igreja pareciam tornar-se, de tão corpulentas, o centro da rua ou do pátio da igreja. Sua majestade era às vezes a de monumentos. Estátuas gigantescas de carne. E não simples mulheres iguais às outras. (Freyre, Gilberto. Manifesto regionalista).

Sem dúvida, os interesses patrimoniais remontam a tantos outros movimentos organizados, tendo sempre o eixo da identidade como um lugar de atenção, como um território concreto de ocorrência, diga-se os regionalismos localizados, os tradicionalismos, por exemplo, dos gaúchos emblematizados no churrasco. São gaúchos no Rio Grande do Sul e são gaúchos em qualquer outro lugar, e além do churrasco identificando-se também pelo chimarrão. São essas experiências de identidade na globalização na fragmentação do território.

No desenvolvimento das políticas públicas, ainda integradas à Unesco, destaca-se a 25ª Reunião da Conferência Geral da Unesco (1989) a recomendação sobre a salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, sendo orientação para os países membros até 2003 com a promulgação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial. O governo brasileiro em abril de 2006 ratificou por meio do Decreto nº 5.753 essa Convenção que assim define patrimônio imaterial:

 

(…) as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhe são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Esse patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e de continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade e à criatividade humana

 

Confirma-se ao mesmo tempo o valor da identidade tradicional em comunicação com a identidade fragmentada e globalizada, certamente um dos mais profundos desafios do que se compreende por salvaguarda do patrimônio imaterial ou intangível.

No caso do ofício das baianas de acarajé e do acarajé que é um fenômeno estudado em espaço urbano na cidade do São Salvador, numa cidade de forte fluxo turístico, nacional e internacional, e que reúne exemplos do patrimônio tradicionalmente consagrado, ou seja: o de pedra e cal, inclusive áreas reconhecidas como Patrimônio da Humanidade _ Unesco _, sugere ações bem mais elaboradas e compreensões mais aprofundadas pelo que se quer entender como identidade,

Estes acarajés são os mesmos comidos no território do terreiro da Casa Banca, Salvador, na festa de Iansã, Oyá, quando se rememora a cena da mulher no tabuleiro que oferece o acarajé, é a mesma cena da mulher que vende no mercado, que traz a memória e evoca o vodum Aizan _ a dona do mercado _, marcando o lugar social e econômico da mulher. É a visão mais próxima do ideal remoto de autenticação de identidade, diga-se fundida, na diáspora, ou mesmo na globalização.

A comida tem vocação patrimonial de testemunho, deslocado em muitos e diferentes movimentos, contudo sempre reconhecidos no ideal de lugar, de identidade tradicional. Creio um dos principais méritos da comida é atribuir valor de povo, de país, de nação. No caso brasileiro, vive-se uma segunda globalização, agora também virtual. É ainda crendo que o cheiro do dendê fervente chama o espírito e dá desejo ao corpo de se aproximar do tabuleiro.

Inicia-se uma conversa: puro, com pimenta, com camarão, com caruru, com vatapá, com salada, e assim, quente do tacho, exalando África/Bahia, quando o olho comeu primeiro, o tato confirmou o calor, e a boca então preparada inclui no complexo sistema do corpo aquela comida que é muito além da comida.

 

RAUL LODY

 

 

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