“Advertência Preliminar” é um artigo de Manuel Querino (1922) sobre a cozinha baiana, que celebra um século em 2022, sendo a base para o seu livro A arte Culinária da Bahia.
Este livro teve a sua 1ª edição em 1928, a 2ª edição em 1951, e a 3ª edição em 2011, sendo esta por mim organizada com as notas e a introdução (WMF Martins Fontes).
Abaixo, o referido texto na íntegra:
Advertência Preliminar
Há dilatados anos, tive que viajar o norte e o sul do Brasil, desde o Piauí até o Rio de Janeiro; e nessa demorada excursão interessaram-se os costumes, os hábitos de cada região, em que o sistema alimentar divergia fundamentalmente do da minha terra, sem embargo de me proporcionarem refeições com a chancela, ou segundo a moda, da Bahia, desde que a mim nomeava a naturalidade. Dessa época longínqua surgiu-me a ideia de esboçar o trabalho que ora empreendo. A cozinha baiana, como a formação étnica do Brasil, também representada a fusão do português, do índio e do africano. É fácil demonstrar. Embora a contribuição do silvícola fosse muito acanhada e rudimentar, todavia, deixou-nos a pamonha e a canjica feitas de milho, o beiju e o mingau preparados com farinha de mandioca ou com a tapioca, goma extraída da raiz desse arbusto, a poçoca ou paçoca, um composto de farinha e carne assada pisada em pilão, o mate, o cariru ou caruru.
O indígena fabricava mais de uma espécie de farinha, tanto que ao peixe seco esfarelado, numa espécie de ralo, dava o nome de farinha de peixe.
A farinha de milho era o milho seco, retirado a película, e bem pisado, misturado com pouca água e cosido em banho-maria, como se pratica no sertão.
Do milho ou da raiz do aipim fermentados extraiam os aborígenes uma bebida extremamente acidulada que, com poucas libações, produzia a exaltação de ânimo e finalmente a embriaguez.
Era o cauim preparado pelas donzelas mais formosas da aldeia. O falecido e ilustrado barão de Guajará (História Colonial do Pará) tratando da fabricação do cauim e referindo-se, em seguida, à frugal alimentação indígena, informou: Era o sumo da macaxeira, aipim ou milho, amassado e mastigado, fervido depois em água, e por fim, lançado em pote até fermentar. A alimentação era farta e variada em certas épocas do ano.
Consistia em caças, peixes, mariscos, batatas e cereais naturais do solo.
Abundavam nos bosques as antas, os porcos, os veados, as capivaras, as pacas, e tantos outros animais conhecidos, além de inúmeras aves e répteis que habitavam nas praias, nas campinas e nas matas.
Cingiu-se, pois, a contribuição do indígena em nos dar a conhecer os elementos, a matéria-prima, por assim dizer, de que se serviam no preparo das refeições.
A classe pobre sertaneja faz, ainda hoje, largo uso alimentar de caça e aves, como o porco do mato, caititu, capivara, veado, paca, tatu verdadeiro, cangambá, jacu, nambu, zabelê, em substituição a carne bovina e donde, talvez, provenha o vigor, a admirável resistência física dos homens do campo.
O português abastado destinava, de preferência, os escravos que adquiria aos trabalhos agrícolas; mas o comerciante, o capitalista, mandava-lhes ensinar as artes mecânicas, conservando sempre um africano ou africana para o serviço culinário, e daí as modificações modernas no arranjo das refeições à moda do Reino com a carne, o peixe, os mariscos, aves e animais domésticos.
As iguarias em que o português fazia uso do azeite de oliva o africano adicionava, com eficácia, o azeite de dendê ou de cheiro.
A frigideira era preparada, de ordinário, com bacalhau pisado, azeite doce, banha e ovos batidos, o africano melhorou-a consideravelmente adicionando o leite de coco para tornar esse prato mais, saboroso, o que é incontestável.
Não era tudo: substituía o bacalhau ou o peixe assado peça amêndoa da castanha verde do cajueiro ou pelo broto, donde partem as palmas mais tenras do dendezeiro ou da carnaúba.
É notório, pois, que a Bahia encerra a superioridade, a excelência, a primazia, na arte culinária do país, pois que o elemento africano, com a sua condimentação requintada de exóticos adubos, alterou profundamente as iguarias portuguesas, resultando daí um produto todo nacional, saboroso, agradável ao paladar mais exigente o que excele a justificada fama que precede a cozinha baiana.
Fora o africano o introdutor do azeite de cheiro, do camarão seco, da pimenta malagueta, do leite de coco, e de outros elementos no preparo das variadas refeições da Bahia.
Eminente médico paulistano, a pouco extinto, traçou no seguinte passo verdadeiro hino de louvor à arte culinária baiana:
A nossa cozinha baiana, especialmente, não tem no mundo rival para o preparo do peixe. Não é só o seu vatapá que se impõe à atenção universal; é com razão que os baianos se orgulham da sua moqueca de peixe, do seu angu de quitandeira, do seu efó e do seu mocotó. O leite coco e o óleo de dendê são dois condimentos portentosos na arte culinária baiana. (Dr. L. Pereira Barreto, “A higiene da mesa”, O Estado de São Paulo, 7 de setembro de 1922)
Os senhorios de eras afastadas, muitas vezes, em momentos de regozijo, concediam cartas de liberdade aos escravizados que lhes saciavam a intemperança da gula com a diversidade de iguarias, cada qual mais seleta, quando não preferiam contemplá-los ou dar expansão aos seus sentimentos de filantropia em algumas das verbas do testamento.
Em vulgar, nos jantares da burguesia, uma saudação, acompanhadas de cânticos, em honra da cozinheira, que era convidada a comparecer à sala do festim e assistir à homenagem dos convivas.
Até as moças de família abastada se exercitavam nos trabalhos culinários, a fim de mais tarde dirigirem, sabiamente, o arranjamento das refeições cotidianas, ou o preparo dos finos manjares das mesas de banquete.
Na elaboração desta monografia tive que me referir a miudezas descritivas, absolutamente dispensáveis aos conterrâneos, mas de inteira necessidade aos que me lerem lá fora.
Cada terra com seu uso – é da sabedoria popular.
M. Querino, Bahia, 1922 (Advertência preliminar in A arte culinária da Bahia. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011)
Manuel Querino, no seu texto “Advertência Preliminar”, olha para a cozinha baiana com um sentimento de pertença, e destaca aspectos singulares, verdadeiramente patrimoniais, que afirmam a existência de muitas cozinhas baianas, que representam a biodiversidade e a multiculturalidade que fazem parte da Bahia.
Querino valoriza a sua identidade baiana por meio dos sistemas alimentares da Bahia, e o contextualiza em outros sistemas alimentares brasileiros.
Desta maneira, há um sentido de mostrar uma cozinha panafricana no seu entendimento de matrizes africanas, e revela suas experiências alimentares nos registros de receitas que mostram as muitas Áfricas que são servidas à mesa da Bahia.
O referido artigo de Querino destaca a comida enquanto uma sabedoria, e afirma, ao mesmo tempo, ser um afro-baiano que vê nos seus hábitos alimentares um lugar de alteridade e de direito cultural.
Raul Lody