A primeira e fundamental pergunta está no olhar e na ideologia do Museu perante os testemunhos materiais e imateriais do homem. Os diferentes processos históricos, econômicos, sociais, tecnológicas, éticos e morais falam e relacionam-se com a instituição Museu, ampliando-se dessa maneira concepções e modos de entender quem é esse espaço tradicionalmente consagrador, legitimador e que, cada vez mais, atinge os espaços da natureza e da cultura.
Destaque para os museus de experiência, no âmbito da gastronomia, onde o ato social e simbólico de comer está integrado no circuito, como a melhor interatividade.
Como então revelar de maneira compatível aos usuários do Museu a sua própria história, quando eles assumem os papéis de protagonistas e de espectadores das suas produções – explicitadores das identidades, situando quem são enquanto indivíduos, no cumprimento e no estabelecimento dos muitos papéis sociais. E aí, os sistemas alimentares promovem o sentimento de pertença e de memória coletiva.
Mostra-se a carga simbólica dos testemunhos no que há de criação, recriação, adaptação, sem esquecer a própria dinâmica da cultura, proporcionando muitas possibilidades de tratar conteúdos convencionalmente trabalhados em exposições.
Ao pensarmos que o homem é fundamentalmente um conceitualizador e simbolizador, devemos compreender, sem hierarquizar, que a memória do seu patrimônio pertence frontalmente a ele e ao seu grupo – produtor e consumidor – ampliando diante desse exemplo uma concepção de Museu. Um Museu não exclusivamente catalisador dos conteúdos, mas na busca de soluções, que educassem, privilegiando a preservação de memórias ancestrais.
Certamente, hoje, busca-se no Museu, um centro de memória ativa e que relacione maneiras interativas ao visitante em contato com a sua história ou com patrimônios que possam, cada vez mais, integrá-lo no conceito mais pleno de humanidade.
Assim, está no Museu, de maneira concreta, parcela significativa das identidades, dos símbolos de grupos, comunidades, sociedades, regiões, povos e civilizações.
O Museu é o espaço que preserva e comunica de maneira tecnicamente intencional histórias, fatos, formas de viver; tendências estéticas, descobertas científicas; informa, alerta, estimula os sentimentos e as emoções perante variados testemunhos ou lugares; promove experiências, e traz também, por exemplo, a comida enquanto um elo cultural das relações sociais.
O Museu assume então seu destino histórico memorial, tratando patrimônios culturais e suas profundas relações com a ecologia, voltando-se aos valores dos indivíduos e seus direitos culturais e de cidadania.
O Museu é um lugar onde o indivíduo, certamente, celebra a sua singularidade e sua relação com a humanidade
Certamente coleções, objetos, imagens fazem os museus. Assim, a importância dos testemunhos materiais enquanto meios de evocar e de trazer memórias e de estabelecer relações contemporâneas conforme olhares e formas de tratar e de interpretar materiais, tecnologias, formas e usos.
Cada objeto responde a um sentido de testemunho, lembrança, nostalgia entre outros. Está no objeto uma tentativa permanente de recuperar sobrevivência tradicional e simbólica.
“Na realidade, não são eles – objetos singulares, barrocos, folclóricos, exóticos, antigos –, um acidente do sistema: a funcionalidade dos objetos modernos torna-se historicidade do objeto antigo (ou marginalidade do objeto barroco ou o exotismo do objeto primitivo) sem, todavia, deixar de exercer uma função sistemática de símbolo.” (Baudrillard, 1989)
O culto ao objeto antigo é um culto à origem, ao mito da origem do próprio homem, e isso se dá com uma receita, com uma comida, com um ritual de alimentação.
“Querer museus com panelas de barro, facas de ponta, cachimbo de matutos, sandálias de sertanejos, miniaturas de almanjarras, figuras de cerâmica, bonecas de pano, carros-de-boi, e não apenas com relíquias de heróis de guerras e mártires de revoluções origens em objetos míticos, funcionais e conviventes dos cotidianos de milhares de pessoas(…).” (Gilberto Freyre, 1969)
Para a compreensão da comida e da alimentação, o tripé técnica, forma e símbolo, é o caminho do etnógrafo e deverá ser seguido também pelo museólogo.
O saber é individual ou compartilhado por outros conhecedores das práticas culinárias. Aí se distinguem organização social, etária, sexual, hierárquica do trabalho. Também, o saber e a autoria combinam-se com temas e processos ancestrais e originários na própria etnia, nos traços culturais, nas tendências, na consagração de “cozinhas”, na inovação, no retorno revivalista de determinada receita ou em um ritual de comensalidade.
Ressalta-se mais uma vez a importância do processo ou de diferentes informações que trazem o caminho do fazer, temporalidade e ritualidade, do ato da criação, valor da ação criadora do homem.
O processo e o valor tecnológico, daí o título tecnologia patrimonial, singularizam indivíduos e, ainda, as suas possibilidades materiais no fazer o objeto ou na realização de uma receita, todos atestadores da história, da função ou do uso social.
“A primeira vista não implica primordialmente um estudo da técnica mas apenas a recolha de objetos e, se possível, de objetos escolhidos nas diferentes fases do seu fabrico. Estes últimos, quando acompanhados de uma documentação suficiente, são testemunhos infinitamente preciosos que permitirão, em larga medida, reconstituir técnicas propriamente ditas.” (Gourhan,1981)
A compreensão patrimonial é ampla, contextual e antropológica. São patrimônios de grupos, de lugares e de pessoas, representando o outro, o diferente, o que é próprio e singular.
No caso do Brasil, a nossa formação pluriétnica aponta para peculiaridades, identidades, representações próprias. Isso é Patrimônio. Isso é Patrimônio Cultural.
Retomando algumas das reflexões de Mário de Andrade e de outros pioneiros, cumpre ampliar esse olhar, permitindo o reconhecimento pela nação brasileira de sua própria complexidade. É um processo de pesquisa e debate que deverá envolver necessariamente diferentes atores.
Em um mundo cada vez mais globalizado, interativo, online, os valores pessoais, individuais, ganham destaques e persegue-se, ao mesmo tempo, um verdadeiro ideal de singularidade. Pode-se, inicialmente, unir os conceitos de singular, peculiar, próprio, com o de identidade, identidades. Planos de expressão do homem, do seu grupo, da sua coletividade.
“(…) a identidade é evidentemente um elemento chave da realidade subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva, acha-se em relação dialética com a sociedade. A identidade é formada por processos sociais. Uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais. Os processos implicados na formação e conservação da identidade são determinados pela estrutura social. Inversamente, as identidades produzidas pela interação do organismo, da consciência individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a, modificando-a ou mesmo remodelando-a. As sociedades têm histórias no curso das quais emergem particulares identidades.” (Berger & Luckmann,1978)
Pertencer a uma comunidade implica estar ligado a outros sentimentos, afetos, identidades compartilhadas. Assim, amplia-se a valorização da comida e da alimentação na afirmação das identidades e da alteridade.
“Da mesma maneira que não se deve envergonhar-se de amar mais os nossos que os outros, sem que isso leve a praticar a injustiça, tampouco deve-se sentir vergonha de ter apego a uma língua, a uma paisagem, a um costume: é nisso que se é humano.” (Todorov, 1990)
No cenário social em que transitam diferentes planos de identidade, vê-se o individual, o coletivo, o pancoletivo em permanentes diálogos.
“(…) as identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo confronto com o outro: por se ter de estar em contato, por ser obrigado a se opor, a dominar ou ser dominado, a tornar-se mais ou menos livre, a poder ou não constituir por conta própria o seu mundo de símbolos e, no seu interior, aqueles que qualificam e identificam a pessoa, o grupo, a minoria, a raça, o povo. Identidades são, mais do que isto, não apenas o produto inevitável da oposição por contraste, mas o reconhecimento social da diferença.” (Brandão, 1986)
Assim, o homem se auto representa, representa e interpreta o outro. Estabelece códigos e no acúmulo de bens materiais, bens simbólicos. Dessa maneira, compreende-se um patrimônio cultural. Patrimônio não hierarquizado. Patrimônio antropologicamente compreendido nos planos da história, das sociedades, da economia, da ecologia, nas produções permanentes e adaptativas dos acervos das culturas.
Ao preservar seu patrimônio histórico-cultural, a sociedade visa ao seu crescimento. Tais valores estão desvinculados do conceito de vulto, monumentalidade ou de excepcionalidade. O comprometimento é existencial e simbólico. O Patrimônio Cultural assume uma fala integradora e de incursão direta à vida.
Assim, o monumento não se pode desligar da paisagem, urbana ou natural, que o rodeia; a arquitetura não é independente da pintura ou escultura. Existem paisagens, lugares, sítios e monumentos cuja conservação não pode levar-se acabo independentemente de um conteúdo espiritual, imaterial, próprio ou de um contexto firmemente ligado aos mesmos. Uma paisagem pode materializar a lembrança de um acontecimento, o bairro antigo de uma cidade, para conservar todo o seu interesse cultural – não pode entender-se isolado de certas características ambientais e vivenciais que constituem a própria sobrevivência da consciência coletiva das comunidades que o constituíram e que ao mesmo tempo se representam.
A representatividade de Patrimônio Cultural nasce da consciência da coletividade. Há edifícios que contam o passado ao presente. Há histórias orais que regulam códigos de ética e de moral. Há tecnologias que circulam nas cozinhas, nas casas, nas oficinas e entre tantos outros locais. Há um permanente desejo de fruição e de falas entre tão diferentes linguagens sensíveis, todas patrimoniais.
Contar o passado ao presente é informar como as obras foram produzidas, individualizadas, e como foram integradas a um organismo em contínuo processo de mudança. A forma com que a sociedade foi se apropriando do espaço, o conhecimento das mutações da trama espacial leva ao conhecimento da própria história da cidade, de um grupo, de um segmento étnico, por exemplo.
Entender o patrimônio cultural, na sua complexidade é ampliar sua leitura de maneira que não incorra nos riscos das importâncias, sendo tarefa que o Estado está assumindo progressivamente e aí, nesse campo, o Museu, enquanto um dos instrumentos dessa política, também amplia sua postura, ou diria, refaz sua postura diante dos testemunhos das comunidades, enfatizando as relações, produtores e produções no âmbito da cultura.
É, sem dúvida, a busca de uma visão antropológica de patrimônio cultural, rompendo em definitivo com os padrões estéticos ou de uma historiografia heroica que tanto conduziam, e ainda em alguns casos conduzem, as organizações de acervos, atuando nos trabalhos museológicos e museográficos.
Atenta-se novamente, para o papel educativo do Museu com a tradição didática que possui, desencadeando atividades que cada vez mais se preocuparão com as comunidades e seus testemunhos. É a importante missão de tratar a memória, de preservá-la, de entender o bem cultural sem a marca de imobilidade. Com os meios de que dispõe, o Museu situará, em mostras de conscientização, exposições volantes, entre outros incontáveis recursos, em técnica e em ação cidadã.
Na constante busca de soluções que apoiem os novos rumos dos Museus atentos e relacionados com as comunidades, sente-se que os quadros técnicos são também ampliados, recebendo adesões de especialistas de outras áreas, além do corpo estável de museólogos, para juntos atenderem as necessidades específicas dos programas. Dessa forma, no caso dos Museus voltados aos acervos de tratamento etnográfico e etnológico, é mais aguçada ainda essa busca de uma interdisciplinaridade.
As funções plurais do Museu, na ocupação devida do seu espaço, nos levam a aceitar a missão de revelar o homem e sua cultura. O Museu sempre deverá estar aberto às experiências, às constantes mudanças, aos usos de novas linguagens e, principalmente, incorporar o seu compromisso com a pluralidade cultural.
Agora, em 25 de maio de 2022, o Museu da Gastronomia Baiana – Senac Bahia, tem a sua reinaugurado, e amplia a sua rede de interatividade, especialmente no que se refere as experiências gastronômicas, porque este Museu é vivo, e busca se comunicar pelos sabores, a melhor forma sensorial de interação para viver essa Bahia multicultural.
RAUL LODY
Serviço:
MUSEU DA GASTRONOMIA BAIANA
Endereço: Largo do Pelourinho, 13/19, Salvador, Bahia 40026-280, Brasil
Telefone: +55 71 3324 4553
Website: http://www.ba.senac.br/museu/
O Museu da Gastronomia Baiana, iniciativa do Senac-Bahia, é um conjunto de espaços que integra o Largo do Pelourinho, onde se localizam os prédios que formam o Museu, sítio histórico reconhecido pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade.