Para dar de comer ao Caboclo

Celebração do bicentenário da Independência da Bahia

“‘Meu pai é brasileiro
minha mãe é brasileira
o que eu sou
eu sou brasileiro”
(Poesia popular do samba-de-caboclo, Bahia)

Para a Bahia, o 2 de julho, ou o tão estimado “Dia do Caboclo”, traz memórias referentes ao imaginário de um Brasil “verde e amarelo”, cores simbólicas do caboclo. E é a data que marca a Independência da Bahia, destacando-se que em 2023, celebram-se 2 séculos deste evento tão significativo para o Brasil.

A Independência da Bahia é profundamente relacionada ao personagem mito-herói que está sintetizado na figura do caboclo. E uma grande produção ritual e simbólica gira em torno desse personagem que manifesta a essencialidade do que é nativo, do que é da terra, do que é genuinamente brasileiro.

O caboclo, esse grande ancestral que se identifica com um Brasil livre, é o símbolo da Independência da Bahia. E tudo isto está relacionado a um sentimento de nacionalidade. O entendimento de ancestralidade do caboclo está num sistema de valor que segue os modelos simbólicos vinculados às matrizes africanas.

Desta profunda relação com o sagrado, do reinventar um Brasil partir do caboclo, o candomblé nas suas Nações Ketu e Angola-Congo recuperam maneiras de organizar liturgias e amplos acervos religiosos chamados de candomblé de caboclo. Também, integrado ao candomblé de caboclo está o tão conhecido, e ritualizado, samba de caboclo. São celebrações que reificam os ideais do que é brasileiro.

O caboclo traz a imagem do indígena, nativo da terra, o dono da terra, o brasileiro mais brasileiro, são alguns indicadores para se organizar a construção do caboclo. E, reafirma-se imaginários sobre um sentimento etnográfico sobre os indígenas nas idealizações sobre a imagem do caboclo. E nesta maneira de se entender quem é o caboclo, destaca-se o que come o caboclo. E assim, busca-se uma identidade alimentar nas comidas e bebidas que não estejam nos cardápios sagrados dos candomblés.

Assim, há uma preferência pelas frutas que representem a cor verde e amarelo, cores do que é nacionalmente brasileiro, cores que identificam os caboclos. Bananas de diferentes tipos; frutas regionais: umbu, licuri, grumixama, pitomba. Além de algumas frutas próprias das localidades em que estejam acontecendo os rituais de caboclo, que se aliam a outras frutas exóticas que se abrasileiraram, por exemplo a manga; como a melancia que é africana; o coco que vem da Índia; e a banana que nasce na Ásia.

O caboclo marca nas suas comidas um sentido, mesmo que idealizado, de ingredientes que chegam das matas, e por isso a utilização de muitas frutas, frutas nativas, da terra, e outras mesmo que exóticas.

“Minha cabacinha
que veio da minha aldeia
se não trouxer meu mel
Eu não piso em terra alheia”
(Poesia popular do samba-de-caboclo, Bahia)

Esse contexto, sejam de bases históricas e/ou sociais, traz a comida nas suas muitas representações simbólicas. E, a comida integra-se a essa compreensão de “nativo”, que traz uma forte representação identitária brasileira, e, em especial, da Bahia.

Ainda, nos cardápios simbólicos, votivos, dos caboclos destaque para a abóbora-moranga dentro de um oferecimento ritual marcante, que é acompanhado com fumo, e com outros preparos dedicados aos caboclos.

Além de valorizar as frutas tropicais, também está presente o milho e o mel; e, uma bebida artesanal chamada de “jurema”, que é servida ritualmente para se celebrar os caboclos.

O oferecimento das comidas e bebidas para os caboclos acontece na aldeia – um lugar especialmente organizado para receber os oferecimentos rituais aos caboclos.

A aldeia é uma instalação geralmente feita com folhas de coqueiro, e recria um ambiente idealizado da mata, um habitar tradicional que identificou o caboclo. Na aldeia são também colocados fios com bandeirinhas de papel nas cores verde e amarelo; bandeiras do Brasil, e outros elementos visuais que possam complementar e ampliar uma estética nacional para celebrar os caboclos.

Também, na aldeia são realizadas as principais cerimônias do candomblé de caboclo, onde as pessoas vão cumprimentar e oferecer presentes aos caboclos que já estão paramentados com as suas indumentárias, geralmente saiote e cocar de penas, e adornos como cabacinhas, fios de contas, entre outros.

Nos ambientes das aldeias acontecem as danças e os cânticos em louvor aos caboclos e as matas, numa louvação para o entendimento da natureza, e de tudo o que ela representa para a vida e para os rituais de caboclo.

E o samba-de-caboclo é uma expressão coreográfica, forte e significativa para a comunicação de cada caboclo, que por meio da dança conta suas histórias, suas mitologias, sua função; e, sua relação com a mata.

Nestes sambas, constata-se uma inclusão evidente dos modelos rítmicos, toques, usuais nos candomblés Angola e Congo, como também os movimentos presentes nas coreografias para realizar o Cabula, o Barravento e o Congo; bases que se ampliam nos estilos e nas formas de relatar através da gestualidade cada história, cada momento ritual dos caboclos.

Ainda nas aldeias, há o oferecimento de frutas pelos caboclos para as pessoas que vão visitá-los e cumprimentá-los, e isto é uma interação ritual, é como um tipo de partilha daquilo que a natureza pode oferecer de alimento. E outro importante ritual que acontece na aldeia é o oferecimento de uma bebida ritual muito importante para os caboclos que é a jurema.

A jurema é uma bebida artesanal feita a partir do vinho moscatel, em que se adiciona mel de abelha, cravo, canela; e a entrecasca da jurema-branca, Mimosa hostilis Benth, espécie botânica nativa.

E assim, desta infusão, faz-se a jurema, que é servida em cuias, e meias-cabaças com toda a cerimônia necessária para marcar o sentido religioso do caboclo. Beber a jurema é uma aliança, a formação de um forte elo sagrado entre a pessoa eu caboco. Há um sentido quase de comunhão no ato de beber a jurema. E como dizem: uma folha sagrada, um pau-santo, um verdadeiro néctar das matas.

Também, a jurema é uma bebida de inclusão, é contactar com o sagrado, é viver a aldeia do caboclo; é experimentar um sentido telúrico, tropical, interpretado como essencialmente brasileiro.

Assim, são nesses momentos de comensalidade que se unem os valores dos mitos nacionais, e das muitas interpretações religiosas das culturas africanas na Bahia. É um modo de pensamento religioso da Bahia que traz modelos etnoculturais de povos africanos para fundamentar os rituais do caboclo, numa busca permanente pela identidade sagrada que identifica quem é o caboclo.

E o cardápio busca trazer tudo que possa significar uma natureza farta e generosa, pois tudo isso determina esse verdadeiro terroir da Bahia, diga-se na área do Recôncavo, ora na afirmação de uma biodiversidade, ora na construção de um sentido de terra brasileira.

 

 

RAUL LODY

BrBdeB

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